Este texto foi retirado do artigo 17. Escrito por Vicente Cernicchiaro
RESUMO
O autor afirma que o crime não pode ser interpretado pela lei apenas formalmente, mas deve ser levada em consideração sua repercussão social. O tecnicismo jurídico deve dar lugar à análise do caso concreto. Entre as espécies atuais de delito, o autor destaca a criminalidade de massa e a criminalidade organizada. Com relação à segunda espécie, observa que, embora não esteja ainda firmado um conceito, o crime organizado apresenta formas de ação que o diferenciam da quadrilha ou bando, como a transnacionalidade, o poder econômico, a formação de rede de agentes e a lavagem de dinheiro. O autor defende a descriminação do uso de entorpecentes. Finaliza mencionando as recentes medidas legais de combate ao crime organizado na ONU e no Brasil.
O crime surgiu com a sociedade. Substancialmente, é conduta negativa. Formalmente, o que a lei definir. Não significa, entretanto, o tipo penal esgotar todas as considerações. O Direito Penal (dogmaticamente) relaciona-se com outras considerações científicas que têm também o crime como objeto. A Criminologia moderna busca as causas da delinqüência, sugere modelos para impedir a conduta delituosa e, por fim, evitar a reincidência. Em terceiro plano, a política criminal se faz presente. Não se concebe mais a norma ser analisada formalmente, sem indagar a repercussão social da interpretação.
Está superado o momento histórico do tecnicismo jurídico (significativa a afirmação de a Filosofia ser dos filósofos e o fato social interessar apenas aos sociólogos). O crime é fenômeno social. O juiz, no momento da sentença, precisa pensar o caso concreto, suas causas e conseqüências. A não ser assim, promoverá raciocínio próprio da Escola da Exegese que teve a pretensão (na verdade, simples miragem) de a lei formal haver trazido todas as soluções jurídicas.
O delito, outrossim, revela várias espécies. Hoje o objeto jurídico é o critério predominante.
Em se observando o fenômeno na sociedade, ganha espaço a classificação: criminalidade de massa e criminalidade organizada. A primeira projeta a idéia de infrações penais impulsionadas, na maioria dos casos, por circunstância de oportunidade. A segunda, ao contrário, difusa, sem vítimas individuais; o dano não é restrito a uma ou mais pessoas. Alcança toda a sociedade.
O conceito de crime organizado ainda não está assente. A doutrina, no entanto, evidencia inclinação para as referidas características, sem desprezar a tendência transnacional. Ainda: hierarquia dos integrantes, como se fosse organização de empresa, responsabilidades definidas, procedimentos rígidos, divisão territorial. Autores acrescentam preocupação permanente de fazer cessar a eficácia dos controles formais de combate à criminalidade. Em conseqüência, busca atrair agentes do Estado para anular a atuação, obtendo, assim, verdadeira impunidade. Ao lado da insinuação da corrupção, tantas vezes, valem-se da violência a fim de, pelo silêncio, não serem importunados.
O desenvolvimento do crime organizado, tantas vezes, é encoberto por atividade comercial lícita. Com a aparência, busca esconder a realidade. Acentua-se, ainda, explorando atividade proibida que, no entanto, não recebe censura da sociedade. Nos Estados Unidos, a chamada Lei Seca é sempre mostrada como exemplo. Quando proibida a venda de bebida alcoólica, marginalmente, era oferecida; revogada, tornando lícito o comércio, podendo o comerciante legalmente estabelecido ofertá-la à população, o ilícito deixou de existir.
Urge incentivar a descriminação do uso de entorpecentes. Hoje, são vendidos ilicitamente e a preço extorsivo. Isso explica o incremento do tráfico (internacionalizado) e os lucros dos intermediários. Não se esqueça ainda, sem receita para o Estado!
O combate ao crime organizado reclama especial atenção à tendência ao caráter transnacional. Não encontra obstáculo no limite dos Estados. O trânsito internacional, diga-se assim, ganha espaço cada vez maior com a globalização da economia, o aperfeiçoamento dos meios de comunicação e métodos internacionais de negócios, ensejando a transferência de capitais com facilidade, burlando a fiscalização oficial.
Não se pode olvidar ainda um ponto importantíssimo: o desequilíbrio econômico das nações. O rompimento de fronteiras, a aproximação das nações, mercados comuns, não obstante a desigualdade econômica desses países, facilita o intercâmbio criminoso. O tráfico de drogas, por exemplo, faz a ponte de país produtor, de trânsito e de consumo.
Esses grupos são dotados de poder econômico. Elegem determinado produto, mantêm rede de agentes.
As legislações de cada país são meticulosamente analisadas. Valem-se dessas leis. Sabido, há países que, dado não disporem de montadoras de veículos, facilitam a entrada de automóveis, caminhões e tratores, fechando os olhos quando ali ingressam. De outro lado, dificultam, ou não envidam esforços para restituí-los ao local de origem.
A chamada "lavagem de dinheiro", então, torna-se conseqüência.O produto da delinqüência, o lucro, enfim, não pode aparecer de um momento para outro. O depósito é efetuado nos chamados paraísos fiscais. Esses, por sua vez, têm de contar com a tolerância do respectivo país. Tantas vezes interessados em incrementar os depósitos, praticamente o grande "produto nacional".
O crime organizado, portanto, não se confunde com o crime de quadrilha ou bando (CP art. 288). Aqui, sem dúvida, há concerto, plano de pessoas para cometer crimes. Todavia, diverge fundalmentalmente quanto ao modo de agir e aos efeitos que produz, repercutindo na estrutura do delito.
O crime organizado transnacional preocupa a ONU; a sua Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal está desenvolvendo estudos para impor sanções a países que, deliberada ou negligentemente, colaboram com esses grupos da deliqüência. Além de recomendações, estudam sanções econômicas para os países negligentes.
A criminalidade tradicional deixou de ser a grande preocupação. Os grupos organizados, ao contrário, ganham as fronteiras e difundem, por meios legais, as ações delituosas.
O Brasil editou a Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995, que Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.
O art. 1º menciona regular meios de provas e investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.
Esse texto não se volta, especificamente, para a repressão ao crime organizado. Repita-se: não se identifica com a quadrilha ou bando.
Mais recentemente, foram publicadas duas leis, estas sim, mais próximas da referida deliqüência. A Lei n. 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, relativa ao porte e uso de arma de fogo e a Lei n. 9.426/96, que reformulou parte dos crimes contra o patrimônio, conferindo especial atenção quando o objeto material for automóvel para ser remetido para o exterior, ou destinar-se ao desmancho para ocultar a origem, ou promover a venda dos componentes.
A ONU, na reunião de maio, em Viena, buscou registrar conceito de crime organizado transnacional. Não houve consenso. Interferem vários interesses. O fato, e aqui não é diferente, acabará por impor a norma. Aliás, é urgente que o faça!